CENTENÁRIO

Pode parecer que não faço outra coisa na vida que não seja ficar de um lado para outro dentro de um avião, mas a profissão de “artista” (não gosto de usar essa palavra para definir minha profissão, mas falo pelos cantores, bailarinos, atores, músicos etc., daqueles que se valem da arte para viver) é mesmo assim.

Alem de ser atriz, sou empresaria e produtora. Sendo assim, sou forçada, dada as circunstancias, a viver viajando.

Então estou eu aqui, mais uma vez cruzando o céu brasileiro, dessa vez rumo a minha casa.

Claro, que nem sempre as viagens são por motivo de trabalho. A desse fim de semana foi por motivo de comemoração. Amiga da família Velloso, fui dar meu beijo a figura viva mais importante dessa família, que estava celebrando seu centenário.

Fico pensando, meu Deus, tenho 49 anos, estou caminhando para o meu meio século. Tantas vezes me pego cansada, com preguiça, dor aqui e acolá. Além de adorar minha idade, o fato de envelhecer não me amedronta como a muitos conhecidos, mas reclamo que não se pode ter tudo na vida. Se por um lado adquirimos mais experiência e sabedoria, por outro perdemos e muito, no físico. Imagina o que é fazer 100 anos?

Um século. Simplesmente atravessar um século de vida e estar no começo de uma outra etapa, certa de que sua firmeza ainda lhe suportará por um longo tempo e que Deus a dê ainda muitos anos de felicidade.

Lúcida e linda, bastante cansada com tantos festejos, mas lá inteira, não querendo perder um só momento da data tão esperada por todos.

Ajoelhei-me aos seus pés para entregar a carta que eu havia feito para ela para a ocasião. Olhei aqueles olhos de 100 anos de profundidade, depois senti aquelas mãos, de uma pele indescritível, tocando a minha fronte, foi de um prazer que não consigo descrever. Aquela doçura, tranqüilidade, soberania e, sobretudo, bondade de 100 anos, a minha frente, foi avassalador.

Hoje, antes da minha viagem de volta, falei com ela ao telefone e os festejos em sua casa, em Santo Amaro, continuavam. O falatório era claramente percebido pelo telefone. Perguntei à ela, quando dariam um tempo para que ela pudesse descansar da festa e ela prontamente me respondeu que ninguém queria dar sossego à ela, mas que fazia parte mesmo de uma comemoração desse porte. Agradeceu-me comovida, as palavras que escrevi em minha carta e por isso, decidi que iria publicá-la aqui, para que ficasse registrada a minha homenagem a essa grande mulher. Essa fortaleza de amor e magnitude.

Mais uma vez, parabéns Canô pela vida que vem plantando com tanta sabedoria.

Um beijo carinhoso.

Ainda sobrevoando o luminoso céu da Bahia, 17 de setembro de 2007.

Lúcia Veríssimo

“Queridíssima D. Canô,

Desde seu aniversário de 96 anos, combinamos que eu nao faltaria ao de 100. Palavra cumprida!

Acontece que, vir a comemoração do seu aniversário de 100 anos é, antes de mais nada, uma enorme satisfação.

Me orgulho de ter tido o privilegio de desfrutar da sua companhia pelos últimos 28 anos. Só isso, para mim era um excelente motivo de comemoração.

Não é todo o dia que o destino lhe coloca em situações tão privilegiadas.

Ter tido a oportunidade de conhecer tão de perto a família que a senhora tão bem criou e conviver com o casal Zeca Onça e Canô, foi um aprendizado do verdadeiro significado da palavra amor.

Perdi a conta das vezes que fui agraciada com as cenas de carinho de vocês dois a frente da TV; das mãos sempre dadas; dos olhares; dos momentos de tanta felicidade, que contagiava a todos; da enorme cumplicidade e a grande alegria da certeza que vocês tinham de se saberem verdadeiras caras metade.

Minha lembrança percorre feliz os momentos que tive na casa da Vianna Bandeira, a doçura da sua voz contando as histórias da construção de toda uma vida; do cheiro da frigideira de tantos sabores; de observar os seus pés que nem encostavam no chão quando eram intimados a acompanhá-la num maravilhoso samba de roda; do ritmo do seu pandeiro; da sua voz cantando “sim foi você que não quis voltar…”; da sua risada calma; da sua segurança ao passar por qualquer situação com a mesma destreza; do carinho com que, todos esses anos, foi capaz de guardar a chave da igreja e cuidar dela como uma extensão da sua casa; do cuidado na escolha das pulseiras; dos vestidos tão imaculadamente brancos; de saber receber a qualquer um, dos de rua como aos de cedro e coroa da mesma forma elegante, cortês, amiga e sobretudo a mais humana de todas; de ter podido ter a oportunidade de vê-la penteando seus longos cabelos, nunca cortados para satisfazer o capricho de um dos seus oito filhos; de poder lhe acompanhar nas compras no mercado de Santo Amaro e assistir como seus fregueses ficam enlouquecidos com sua chegada; sentir sua mão de pele tão fina, numa temperatura tão particular num carinho na cabeça, é um dos momentos mais delirantes que se pode ter e tudo embalado pelo som perfeito do seu assobio.

Pode alguém não se orgulhar de ter tido essa oportunidade na vida?

Quero que toda a alegria que sempre a acompanhou durante todo esse século se multiplique ainda mais, porque quem teve como escolha semear o amor como sempre foi sua intenção e ação, não tem com o que temer, pois Deus estará sempre ao seu lado.

Que esse seu século de vida seja o exemplo da prática do saber bem viver.

Muito obrigada por ter, sempre, me recebido tão bem e agradeço ainda mais por tudo que me ensinou.

Guardo-a na parte mais tenra do meu coração e é ele mesmo que agradece por tudo e deseja que esse novo século que agora começa, lhe receba com todas as honrarias que lhe são pertinentes.

 

Santo Amaro, 16 de setembro de 2007.

Lúcia Veríssimo

Deixe uma resposta